Sistema de transposição para peixes gera divergência entre biólogos e engenheiros

Por Fernanda Faustino
A construção de uma barragem ou hidrelétrica prejudica a reprodução de diversas espécies de peixes, pois impede que eles nadem rio acima em busca de um local apropriado para a desova. A solução encontrada para minimizar o impacto foi a construção de escadas - sequências de tanques que formam uma corredeira artificial capaz de transportar esses peixes pela velocidade e turbulência das águas.
De acordo com o engenheiro Sidney Lazaro Martins, do Departamento de Hidráulica, Hidrologia, Arranjos e Meio Ambiente da Themag Engenharia, a construção da escada tem como um dos objetivos manter a genética (sistema de reprodução dos peixes) entre o reservatório e o rio remanescente. "Os peixes que estão depois da barragem devem manter a mesma biodiversidade do reservatório", explica. "O outro objetivo da escada é manter o ecossistema transportando cardumes, essencial para manter a diversidade e o estoque na região", observa.

A escada para peixes é uma sequência de tanques que formam uma corredeira artificial capaz de transportar esses peixes pela velocidade e turbulência das águas
O engenheiro explica que quando se quer manter um ecossistema, é necessário fazer com que os peixes desçam e subam a escada que foi criada para esse fim. "Após esse movimento, os peixes necessitam encontrar um local apropriado para desovar e se desenvolver e retornar ao local de origem", analisa.
Segundo Martins, os números são bastante representativos quando falamos da biodiversidade brasileira. "Dois terços das espécies de peixes de água doce estão na América do Sul, como consequência, a biodiversidade dos peixes no Brasil é grande", ressalta. "As barragens são obstáculos à manutenção desses peixes."
A escada, segundo Martins, serve para todos os modelos de reprodução. "Para que o projeto seja eficaz, é preciso ter uma base de dados bastante desenvolvida. É preciso saber qual é a porcentagem de peixes que podem passar por um vertedor ou turbina ou se é preciso algum instrumento específico para o retorno de peixes em todos os seus estados de desenvolvimento, por exemplo. Essa base de dados consiste em saber taxa de mortalidade, características da região e espécies de peixe", observa. De acordo com Angelo Antonio Agostinho, professor de Ecologia na Universidade Estadual de Maringá e pesquisador do Nupélia - Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura da UEM - Universidade Estadual de Maringá, a natureza benéfica ou prejudicial de uma passagem de peixes depende de uma série de circunstâncias locais que recomendam que a avaliação seja feita caso a caso. "Pode se constituir em uma ferramenta de manejo desejável quando trechos livres relevantes - com áreas de desova e criadouros naturais - ainda persistem acima do reservatório", explica.
O outro objetivo da escada é manter o ecossistema transportando cardumes, essencial para manter a diversidade e o estoque na região
Mesmo nesse caso, de acordo com Agostinho, a quantidade de peixes que usam a passagem deve ser controlada para não prejudicar os estoques nos trechos abaixo. "Mesmo quando as condições locais recomendarem, as passagens de peixes devem ter sua construção motivada por questões mais genéticas - reduzindo os efeitos da fragmentação - do que demográficas - aumentando os estoques a montante", explica. Segundo Agostinho, caso o trecho acima possa manter populações sustentáveis - com ciclo de vida completo - quem regulará o tamanho do estoque é a capacidade de suporte do ambiente, de nada adiantando a passagem de grande quantidade de peixes. "Ressalta-se, no entanto, que fragmentos de população estão sujeitos a problemas genéticos que podem levá-los, a médio e longo prazo, à extinção", explica.
De acordo com o professor, é importante destacar que, quando não houver possibilidade de a espécie desovar nos segmentos acima do reservatório, as passagens devem ser evitadas, especialmente se o trecho abaixo oferecer condições para a manutenção de populações sustentáveis - áreas de desova e desenvolvimento inicial. "Nesse caso, o impacto da ação do homem seria incrementado, pois os peixes seriam atraídos pelo fluxo de água para o trecho a montante, de onde as chances de seu retorno são reduzidas e as chances de reprodução nulas", enfatiza.
De acordo com ele, isso permitiria classificar a escada como armadilha ecológica. "Os estudos já realizados demonstram que o retorno de peixes para os fragmentos de jusante é quase nulo e que os ovos e larvas resultantes de uma eventual desova têm poucas chances de atravessar as águas transparentes e quase paradas do reservatório. Ou eles iriam para o fundo ou seriam predados", analisa.
Martins explica que, na verdade, não existe solução para o problema da migração de peixes. "A escada não é a solução. O que existe é a mitigação. O uso da transposição com uma escada é o único processo que se tem para mitigar o impacto com a função de interligar os ambientes aquáticos".
Segundo o engenheiro, a partir do momento em que se faz a transição de cardumes, é preciso transportar todos, mas isso ainda não é possível. "Não é possível transportar todos os cardumes e/ou espécies, e isso em qualquer lugar do mundo, apesar de termos em alguns países uma tecnologia que possibilita a subida e a descida dos peixes", relata. "E não fazer nada para a transposição dos peixes é antiético", argumenta.
A construção da escada também serve para manter a genética (sistema de reprodução dos peixes) entre o reservatório e o rio remanescente
Conforme Martins, o projeto de uma hidrelétrica tem, basicamente, quatro etapas. São elas: inventário; viabilidade; básico; executivo. Os estudos de impacto ambiental entram na parte de viabilidade. "Para isso dependemos muito da experiência pessoal adquirida com erros e acertos, pois no Brasil faltam investimentos em ciências aplicadas. No exterior, por exemplo, a melhoria é contínua", relata.
Agostinho, por sua vez, informa que algumas escadas existentes nos reservatórios de Canoas I e Canoas II, que compreende o rio Paranapanema, por exemplo, são armadilhas ecológicas. Não há trechos livres a montante que possam comportar locais de desova e áreas de várzeas, enquanto abaixo de Canoas I há o rio das Cinzas, onde as espécies migradoras, atraídas pela escada, poderiam se reproduzir. "Não conheço nenhum sistema de transposição em que haja estudos que indiquem resultados positivos.
Segundo ele, embora haja uma porcentagem de eficiência na passagem de algumas espécies, as escadas são muito seletivas. "Não tenho conhecimento de nenhuma em que menos de 60% dos peixes que sobem pertençam a mais de três espécies - quase todos os estudos se baseiam apenas no próprio mecanismo, sem qualquer informação do que acontece com os peixes que chegam ao reservatório".
De acordo com Agostinho, uma das soluções seria fazer uma transposição controlada, quando necessário. "Poderia ser, inclusive, manual ou com mecanismos mistos tipo escada ou elevador para a captura e caminhão para transporte", ressalta. "Isso seria suficiente para garantir a variabilidade genética entre os fragmentos populacionais."
Entretanto, segundo ele, há diversas técnicas de manejo de recursos pesqueiros que poderiam ser priorizados, como manejo de habitats - desova, criadouros naturais, capacidade biogênica por manipulação de nível - ou mesmo de populações. "Um cuidadoso programa de repovoamento com o rigor nos cuidados genéticos para também não se constituir em nova fonte de impacto", ressalta.
Todavia, para Martins, algumas técnicas citadas por Agostinho são inviáveis ou precisam de estudos consistentes. "A transposição feita por elevador e caminhão-tanque, por exemplo, mata os peixes que ficam em baixo por causa do esmagamento e a falta de oxigênio", explica. "Pior do que ter a escada é não ter nada", salienta.
Para se ter um projeto completo e eficaz, segundo Martins, é necessário que o estudo seja multidisciplinar, tendo como base os enfoques e as necessidades dos biólogos, ecólogos e engenheiros, a biogeografia, a biofísica. "Não podemos ter a visão limitada de uma área apenas, é preciso englobar tudo", conclui.

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